sexta-feira, março 31, 2006

O grande circo Brasil


Deputados que caçoam dos eleitores, leis que protegem poderosos, mas punem cidadãos comuns e choques entre Poderes. O País virou um picadeiro de contradições ...


A blusa amarela esvoaçante, contrastando com o tapete verde da Câmara dos Deputados, dava um destaque especial à senhora de cabelos grisalhos. Dançando entre as cadeiras do plenário, na madrugada de quarta-feira, tratava-se da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) extravasando sua alegria pela absolvição, minutos antes, do deputado João Magno (PT-MG). Ele tornou-se o sétimo integrante do bloco dos mensaleiros a se livrar da cassação. Magno enfiou a mão no esquema de propinas operado pelo publicitário Marcos Valério – o valerioduto –, de lá retirou R$ 425 mil para jogar no caixa 2 de sua campanha em Minas Gerais e saiu-se livre. Tudo pela solidária complacência de um Congresso cada vez mais cúmplice das pequenas e grandes ilegalidades que praticam parlamentares de todas as cores partidárias.
A dança da madrugada, em tudo ridícula diante dos olhos dos brasileiros, pareceu mais do que uma extemporânea comemoração: a deputada Ângela pisoteou ali, com seus passinhos bizarros, o que restava do respeito que se deve ao Congresso. Caía sobre aquela casa, em meio ao show, uma lona de circo.
Horas antes, o mesmo plenário, sem deputado dançante, salvou da forca outro felizardo – o deputado Wanderval Santos (PL-SP), que chorou de emoção. Nos dois casos, contrariando o parecer do Conselho de Ética, que pedia condenações. Virou moda o plenário, protegido pelo anonimato do voto secreto, desfazer o que o conselho constrói com o voto aberto de seus membros, refletindo a indignação da sociedade brasileira. Sempre com a mão amiga do governo, que escolhe a dedo a hora da votação, em dias de quórum baixo e muitas abstenções. O país do mensalão, ao que parece, entrou na era dos sinais trocados, confundindo o que é certo com o que é errado. Enquanto os deputados vão sendo absolvidos, o mesmo caixa 2, que para eles não é crime, fora do Congresso é tratado com intolerância. Ainda não foram esquecidas as cenas dos empresários que, no ano passado, saíram algemados de suas casas e locais de trabalho, apenas pela suspeita da prática que os políticos tratam como banal. Foi assim com a família Schincariol e com Eliana Tranchesi, a dona da loja de roupas finas Daslu. A cervejaria e o templo do alto consumo foram invadidos pela Polícia Federal, em cena acompanhada pela tevê, com direito a metralhadora em punho e triunfal apreensão de documentos e notas fiscais fraudulentas.
Os pesos e medidas diferentes para crimes cometidos pelos que têm mandato ou estão sob a proteção do Estado e, na outra ponta, para os que são cidadãos brasileiros comuns, vão possibilitando o surgimento de situações surrealistas. O tesoureiro-símbolo do PT, Delúbio Soares, réu confesso do caixa 2, que passou mudo e teso pela CPI dos Correios, agora tomou coragem para abrir o bico. Ele pede na Justiça uma “reparação moral” à União, por ter seu nome usado como exemplo de “peculato” numa prova de concurso para procurador da Fazenda. Quer R$ 200 mil para se ressarcir do constrangimento a que diz ter sido submetido. O ex-ministro Anderson Adauto, igualmente confiante, tem passeado pela CPI dos Correios com tons desafiadores: “Todos aqui já usaram de caixa 2.” O governo e o PT chegaram a ir ao Supremo Tribunal Federal pelo sagrado direito de preservação do sigilo bancário de Paulo Okamoto, presidente do Sebrae e doador universal da família Lula da Silva. Até agora ele não conseguiu explicar por que pagou, do bolso, as contas do amigo Lula e da filha do amigo, Lurian. Já o caseiro Francenildo dos Santos Costa, o Nildo, não precisou de ninguém conhecido para escancarar sua conta de filho de lavadeira: um anônimo invadiu o terminal da Caixa Econômica Federal, sem ordem judicial, e derrubou a privacidade que o STF protege com tanto zelo no caso do amigão Okamoto.
Às vésperas de uma acirrada prévia do PMDB, crucial para a sorte de Lula na eleição de 2006, o ministro Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerou a disputa ilegal. Não pesou o fato de o partido contemplar a modalidade em seus estatutos, nem que se trata de uma organização privada e legal. Em seguida, ele viajou ao seu Estado natal, Maranhão, para se lançar candidato a governador pelo PSB. Ali, tem como aliado o PT de Lula. Fez com isso a alegria de seu padrinho na política, o senador José Sarney, que jogou tudo na anulação das prévias, como queria o Palácio do Planalto. Outros juízes, os desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, fizeram diferente: entraram em greve contra a diretriz do Conselho Nacional de Justiça que proíbe o nepotismo e salários acima do teto de R$ 22 mil.
Quando não é da toga, é da farda que vem o mau exemplo de um país que perpetua privilégios. O general Francisco de Albuquerque fez voltar à plataforma um avião da TAM que taxiava na pista, tirou um casal do vôo e embarcou com a mulher rumo a Brasília. A Comissão de Ética Pública da Presidência da República concluiu que o general recebeu tratamento privilegiado, mas não merecia punição. O argumento: não ficou provado que o militar se valeu de seu prestígio para embarcar. Nem era o caso, para quem, casualmente, é o comandante do Exército e chefe de 170 mil homens armados. Num país com tantas inversões, não é mais possível duvidar da profecia de Delúbio Soares, quando começou a CPI: “Isso ainda vai virar piada de salão!” O pior é que não era piada.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial